sábado, 5 de março de 2011

Homilia dia (06/03/2011) Ouvir e praticar a Palavra de Deus é o fundamento da vida cristã



IX Domingo do Tempo Comum – Ano A
Dt 11,18.26-28; Sl 31(30); Rm 3,21-25.28; Mt 7,21-27

Em cada domingo do ano, em clima de alegria, reunimo-nos na igreja, “a nossa casa”, para ouvir o que Deus tem a nos dizer. Neste ambiente comunitário e litúrgico, ouvimos a proclamação da Palavra de Deus e nos alimentamos de Jesus Cristo, a Palavra viva do Pai, que se fez alimento de salvação para a nossa vida, a fim de que, no decorrer da vida cotidiana semanal, possamos prolongar a vivência e a prática da Palavra proclamada liturgicamente.  É por isso que, na Oração depois da Comunhão, suplica-se: “Dai-nos proclamar nossa fé não somente em palavras, mas também na verdade de nossas ações, para que mereçamos entrar no reino dos céus”.
Existe, em nosso tempo, entre os cristãos das mais variadas denominações, uma infinidade de iniciativas, destinadas ao anúncio da Palavra de Deus, envolvendo grande número de pessoas, que o fazem pela via da pregação, de impressos e de outros meios. Há, sim, um grande interesse e zelo em divulgar a Palavra, porém, pode-se perguntar se este interesse e zelo são iguais em relação ao seu testemunho e à sua prática. Não basta ouvir e compreender a Palavra de Deus, mas é preciso praticá-la, e nisto se decide a salvação cristã: é isto que trata a liturgia deste domingo.
Alguns documentos recentes da Igreja têm enfatizado a necessidade de unir o anúncio do evangelho e o exemplo de vida. A credibilidade do anúncio do evangelho e da missão da Igreja depende do testemunho dos cristãos, pois “para manifestar diante dos homens sua força de verdade e de irradiação, a mensagem da salvação deve ser autenticada pelo testemunho de vida dos cristãos” (Catecismo da Igreja Católica, nº 2044). A unidade entre o anúncio da salvação e a prática correspondente, para os batizados, “não é tarefa opcional, mas parte integrante da identidade cristã, porque é a extensão testemunhal da vocação mesma”, diz o Documento de Aparecida (nº 144). E, prossegue o mesmo documento: “Ao participar dessa missão, o discípulo caminha para a santidade. Vivê-la na missão o conduz ao coração do mundo. Por isso, a santidade não é fuga para o intimismo ou para o individualismo religioso, tampouco abandono da realidade urgente dos grandes problemas econômicos, sociais e políticos da América Latina e do mundo, e muito menos fuga da realidade para um mundo exclusivamente espiritual” (Documento de Aparecida, nº 148).  A vida do evangelho deve reluzir no evangelho da vida dos cristãos: “(...) é importante que cada modalidade de anúncio tenha presente a relação intrínseca entre a comunicação da Palavra de Deus e o testemunho cristão; disso depende a credibilidade do anúncio. (...) um implica e conduz ao outro (...). Deste modo, aqueles que encontram testemunhas credíveis do Evangelho são levados a constatar a eficácia da Palavra de Deus naqueles que a acolhem” (Bento XVI, Exortação Apostólica Pós-sinodal Verbum Domini, nº 99).
Deus ofereceu a Lei ao povo israelita como caminho de salvação, cuja prática era garantia da sua bênção, e, ao invés, o abandono da prática da Lei acarretaria a maldição: “Eis que ponho diante de vós a bênção e a maldição; a bênção se obedecerdes aos mandamentos do Senhor vosso Deus, que hoje vos prescrevo; a maldição se desobedecerdes aos mandamentos do Senhor vosso Deus e vos afastardes do caminho que hoje vos prescrevo” (Dt 11,26-28). O próprio Deus, por meio de Moisés, recomenda que o povo tenha sempre diante dos olhos as palavras da Lei, a fim de gravá-las na mente e no coração, e assim não seja esquecida (Dt 11,18). Recordar às palavras da Lei e praticá-las, para o antigo povo judeu, era a maneira de consagrar a vida a Deus, renovar a sua pertença e levar a sério o compromisso da Aliança. A Lei de Deus não era uma opressão, mas libertação, cuja prática devia ser imediata, urgente, como se percebe na palavra “hoje”, a qual aparece três vezes na primeira leitura (vv. 27.28.32). É uma pena que a recompensa pelo cumprimento da Lei era interpretada pelos antigos judeus mais em sentido material, como a garantia da prosperidade econômica, a descendência numerosa e a vida longa até à velhice.
Em continuidade à proclamação dos ensinamentos do Sermão da Montanha, o evangelho deste domingo insiste no valor do cumprimento das palavras de Jesus: “Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no reino dos céus, mas o que põe em prática a vontade do meu Pai que está nos céus” (Mt 7,21). Não basta anunciar o “nome de Jesus” e o seu evangelho, mas é preciso praticar o evangelho. Belas e boas palavras não bastam, nem mesmo a boa-fé; não bastam as intenções, mas é preciso ações; não bastam propósitos, mas é preciso realizações; não bastam projetos, mas é preciso execuções. As palavras, as intenções, os propósitos e os projetos não garantem de per si a veracidade e a credibilidade do cristianismo. O cristianismo não se impôs à cultura grega mediante discursos, mas pela prática da solidariedade entre os próprios cristãos.
É bem provável que a advertência de Jesus – “Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’...” seja uma evocação da experiência da Igreja primitiva que invocava o “nome de Jesus” para a realização dos milagres, dos exorcismos e das profecias, mas que, pela falta de coerência dos cristãos, não garantia a autenticidade da vida cristã. A inautenticidade cristã será colocada plenamente à descoberta no juízo do final dos tempos, “naquele dia”, em que os falsos discípulos serão desmascarados: “Então lhes direi publicamente: ‘Jamais vos conheci. Afastai-vos de mim, vós que praticais o mal” (Mt 7,23), julgamento que retoma o Sl 6,9. Jesus não está se referindo a grandes criminosos, mas a fiéis cristãos de comportamento incoerente, que aprisionam a caridade, reduzem o nível espiritual da comunidade e colocam em perigo a vida de fé das pessoas simples, numa palavra, os que vivem de aparências, e a aparência não é a realidade. A antecipação do juízo de Jesus no final dos tempos é mostrada em outra passagem do evangelho de Mateus, na parábola da figueira, imagem do verdadeiro ou falso discípulo de Cristo: “... toda árvore boa dá bons frutos e toda árvore má dá maus frutos” (Mt 7,17). Uma árvore pode ser frondosa, de bela copada, e não produzir frutos: é a parábola da figueira estéril (Mt 21,29). Se a aparência não é a realidade, então uma pessoa pode saber muito e fazer pouco ou nada, pode ter belo discurso, mas própria vida desdiz o que ensina aos outros, poderá ser muito eficiente, mas sem produzir conversão. Uma arvore pode ser muito bonita, mas se não tiver raízes profundas, não resistirá às intempéries.  
As instruções de Jesus no Sermão da Montanha não são verdades abstratas, e sim verdades a serem praticadas, e o fato de simplesmente compreendê-las não é uma resposta suficiente da parte dos discípulos: “O conhecimento do valor da Palavra de Deus e o conhecimento de Deus mesmo como sendo a minha eternidade só é conseguido pela práxis. A questão é escutar e fazer (...). Não tanto as fórmulas intelectuais contêm a verdade, antes o nosso agir. Não há verdadeira ortodoxia sem a ortopraxia. Pois, o que tem palavras ortodoxas, nem sempre age retamente, mas quem age conforme o espírito de Deus tem também a visão certa de Deus (mesmo se as suas palavras forem, às vezes, um tanto inadequadas). E, para quem não age conforme a palavra que escuta, a ruína será grande (Mt 7,27)” (J. Konings).
O evangelho deste domingo é duro, pois pretende remover os perigos do entorpecimento espiritual que acometia os cristãos da comunidade de Mateus. Era preciso, ali, despertar para a obediência concreta aos ensinamentos de Jesus, e, para isso, não bastava a audição, mas impunha-se a necessidade de agir. É esta a lição da parábola dos dois construtores: “Quem ouve estas minhas palavras e as põe em prática é como um homem prudente que construiu a sua casa sobre a rocha. (...) Por outro lado, quem ouve estas minhas palavras e não as põe em prática é como um homem sem juízo que construiu a sua casa sobre a areia (...)” (Mt 7,24-26). A tarefa cristã é construir a vida sobre o fundamento sólido da Palavra de Deus, ou seja, em base ao conhecimento e observância do evangelho e dos valores do reino de Deus, o que lhe garantirá uma felicidade que perdura para sempre, mesmo que sobrevenham em decorrência disto perseguições, adversidades, revezes, provações de todo o tipo, no entanto, “a sua casa não cairá, porque está construída sobre a rocha” (Mt 7,25).
Construir uma casa sobre uma base sólida, firme, exige planejamento, cálculo, atenção às condições do terreno e do clima, para evitar que ela desabe à primeira ameaça. A comparação de Jesus é clara: a vida cristã deve ser construída com planejamento, cálculo, sabedoria, discernimento, a partir de um projeto de vida que responda ao querer de Deus. Isso significa não fazer da vida uma aventura, muito menos tomar decisões arbitrárias ou sem medir as conseqüências. Aqui, vale outra comparação: se um engenheiro, por exemplo, para a construção de uma ponte, fizer os cálculos errados, a ponte não subsistirá e poderá provocar muitas mortes.
Em tempos de ditadura econômica, como se vive hoje, em que impera a lei do provisório, do imediato e do usufruto irresponsável, vale recordar a virtude da prudência de que fala o evangelho.  A prudência é a “regra certa da ação” (S. Tomás de Aquino), a capacidade de discernir as condições e os meios para praticar o bem e evitar o mal. A prudência é uma virtude prática que “guia o juízo da consciência, de modo a agirmos sem medo de errar (...), contudo, não deve ser confundida com o medo, a timidez, nem com a duplicidade ou dissimulação” (Catecismo da Igreja Católica, nº 1806).
A segunda leitura (Rm 3,21-25.28), que se pode chamar de “a essência do evangelho de Paulo” (Joseph Fitzmyer), trata da justiça divina. A vinda de Cristo ao mundo inicia um novo período para a humanidade, o tempo da justiça divina, da qual nos tornamos participantes através da fé.  Somos salvos-justificados mediante a fé no evento Cristo. Em Cristo, manifestou-se a justiça de Deus, por isso, o seu evangelho é “a força de Deus para a salvação de todo aquele que crê” (Rm 1,16).  Este novo tempo sucede ao tempo da lei, da circuncisão e das promessas. A humanidade, sem o evangelho, estava sujeita à ira de Deus, mas a partir de Cristo, a salvação independe da lei e é destinada a substituí-la: “A finalidade da Lei é Cristo para a justificação de todo o que crê” (Rm 10,4). A salvação cristã é destinada a todos, em modo gratuito e misericordioso: é o mistério da graça - pois que “todos pecaram e estão privados da glória de Deus” (Rm 3,23) – em virtude da obra redentora de Cristo: “(...) e a justificação se dá gratuitamente, por sua graça, em virtude da redenção realizada em Jesus Cristo” (Rm 3,24).
Diante da oferta gratuita da salvação cristã, que Deus dá por meio de seu Filho “a todo o que n’Ele crer”, cabe-nos acolher e cooperar com este projeto redentor, não só aderindo intelectualmente, mas também através das obras. A redenção cristã do mundo se prolonga no testemunho e nas atividades concretas dos cristãos. Não serão as nossas obras, compromissos e realizações que nos darão a justificação diante de Deus, porque esta é pura graça, puro dom: é Deus quem nos salva, e não nós mesmos, mas a salvação não acontece totalmente alheia às nossas ações.
A doutrina paulina da justificação – somos salvos pela fé e não pelas obras – por muito tempo dividiu católicos e protestantes, porém não existe incompatibilidade entre a fé e as obras no que diz respeito à salvação. As obras são conseqüência e cooperam para testificar a fé. O apóstolo Paulo nunca negou a relação entre a salvação e as obras realizadas (o testemunho da caridade). A fé é o início da “nova vida”, dada gratuitamente ao cristão desde o batismo, mas esta “nova vida” está ligada à esperança e à caridade: “Em Jesus Cristo, nem a circuncisão tem valor, nem a incircuncisão, mas a fé agindo pela caridade” (Gl 5,6); “Pela graça de Deus fostes salvos, por meio da fé, e isso não vem de vós, é dom de Deus: não vem das obras, para que ninguém se encha de orgulho. Pois somos criaturas dele, criados em Jesus Cristo para as boas obras que Deus já antes tinha preparado para que nelas andássemos” (Ef 2,8-10); “(...) pela graça de Deus sou o que sou: e a sua graça a mim dispensada não foi estéril. Ao contrário, trabalhei mais do que todos eles; não eu, mas a graça de Deus que está comigo” (1Cor 15,10).
Jesus nos confiou o evangelho, não para que este fique apenas como livro, mas para que seja vivido, com alegria e criatividade. Peçamos ao Senhor a graça de ouvir sempre a sua Palavra e de vivê-la, assim a nossa vida tornar-se-á um evangelho vivo por meio do qual muitas pessoas passarão a crer no mesmo Deus que nós cremos e para o qual vivemos.

Frei Nedio Pertile
Cuiabá, 05 de Março de 2011.

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Segui-lo é nossa graça; e
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