sexta-feira, 25 de março de 2011

Homilia dia (27/03/2011) Retornemos à fonte, para beber água pura!


III Domingo da Quaresma – Ano A
Ex 17,3-7; Sl 95(94); Rm 5,1-2.5-8; Jo 4,5-42

Bebemos água raras vezes diretamente da fonte; normalmente, bebemos a água já tratada, que chega até nós depois de passar por logos canos, para finalmente ser sorvida em copos. Quem não tem saudade da fonte de água lá na roça em que se a bebia na palma da mão! Lá a água é fresca e pura. “Queres água limpa? Cuida das fontes!”, dizia um pregador cristão, empenhado na luta pela conservação dos mananciais que abastecem as populações. Com efeito, beber água cristalina, pura, é desejo de todo habitante deste planeta, chamado Terra. São Francisco de Assis, no século XII, já louvava o Criador do mundo pelo presente da água: “Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água, que é mui útil e humilde e preciosa e casta” (Cântico do Irmão Sol).

Sim, a água é presente de Deus à humanidade. É dom. Nós, humanos, não a inventamos, nem a produzimos, mas ela está aí e nós a acolhemos. Ela faz bem a todos os seres vivos, estes precisam dela para sobreviver, a ponto de que, sem ela, todo ser vivo morreria. Santo Antônio de Pádua já dizia em seus sermões, no século XII, que “o segredo da vida está na umidade”. A “humildade” da água pode escapar de nossa percepção. Com efeito, nós a utilizamos para a limpeza, para fazer comida, para irrigar a plantação, etc., e nos damos conta de sua importância quando ela começa a faltar.  

Infelizmente, nas últimas décadas, a água vem sofrendo maus tratos por parte de seres humanos, dominados pela avareza sem limites, que a desperdiçam, a comercializam e a contaminam com venenos, colocando em risco as suas reservas disponíveis na natureza, a sobrevivência das espécies vivas, alterando inclusive o clima no planeta.

Foi por falta de água que o povo eleito, enquanto peregrinava pelo deserto, conforme a primeira leitura deste domingo (Ex 17,3-7) começou a murmurar contra Moisés. O deserto, sabemos, é seco e árido, raros são os oásis ali existentes: “Por que nos fizeste sair do Egito? Foi para nos fazer morrer de sede, a nós, nossos filhos e nosso gado? (Ex 17,3). Ao murmurar, o povo duvidou de Deus, e o colocou à prova: “Será que Deus nos abandonou ou Ele está conosco?”(Ex 17,7). Mas nesta provação, bem como em outras, Deus se mostrou fiel, não abandonando o seu povo, fazendo brotar água da rocha, por meio da intercessão de Moisés: “Toma a tua vara com que feriste o rio Nilo e vai. Eu estarei lá, diante de ti, sobre o rochedo, no monte Horeb. Ferirás a pedra e dela sairá água para o povo beber” (Ex 17,5-6). Deus deu água ao povo para beber, mas não por causa da murmuração, e sim por amor, por graça.

Este episódio da murmuração contra a falta de água mostra como é difícil assumir o destino e a própria liberdade. A liberdade é uma provação e tem seu custo. A murmuração do povo eleito é uma atitude saudosista da escravidão do Egito, onde havia água e comida, mas não havia liberdade. Diante das dificuldades da vida, a tentação é escapar da situação em que se está, evadir-se, ou querer voltar para trás. O retorno parece ser mais cômodo do que seguir adiante superando os obstáculos que se apresentam. Diante do sofrimento, a tentação do ser humano é “sair pela tangente” e responsabilizar Deus pelo que está acontecendo. A omissão é o princípio da desresponsabilização, o caminho mais fácil das tentações. Os seguidores de Jesus da primeira hora ouviram do próprio Mestre uma dura advertência: “Quem põe a mão no arado e olha para trás não é apto para o Reino de Deus” (Lc 9,62). Por que colocar Deus à prova quando a vida começa a ficar dificultosa? Será que a caminhada da vida é sem pedras e sem espinhos? Ou então será que preferimos que todas as coisas caiam prontas do céu?!

O apóstolo Paulo relê o acontecimento da água que brotou na rocha do deserto à luz da revelação de Cristo: Ele é a rocha que já jorrava no Antigo Testamento para aqueles que o esperavam: “Não quero que ignoreis, irmãos, que os nossos pais (...) comeram o mesmo alimento espiritual, e todos beberam a mesma bebida espiritual, pois bebiam de uma rocha espiritual que os acompanhava, e essa rocha era Cristo” (1Cor 10,1.3-4). Para o apóstolo, a água que brotou da rocha é dom de Cristo associado ao dom do batismo cristão, pois, na morte de Jesus, conforme a segunda leitura, Deus “demonstra seu amor por nós pelo fato de Cristo ter morrido por nós quando éramos ainda pecadores” (Rm 5,8).

O evangelho deste domingo narra a longa conversa, paciente e pedagógica, que Jesus teve com a mulher samaritana sobre o “dom de Deus”, a “água viva” (Jo 4,5-42), ocasião em que Jesus infringiu costumes sociais de então e mostrou superação da aversão dos samaritanos contra os judeus. À parte essas superações, nem todos compreendem esse mistério da “água viva”. Jesus, inicialmente, desconcerta a samaritana ao pedir-lhe água: “Dá-me de beber” (Jo 4,7). A samaritana, ao deparar-se com um pedido inusitado, não sabe quem é Jesus, vê nele apenas um judeu peregrino, que se aproximou do poço por causa da sede, sob o sol escaldante do meio-dia. Quando Jesus lhe fala sobre a “água viva”, a samaritana pensa na água corrente de um poço ou de uma cisterna, por isso reage com ironia: “Senhor, nem sequer tens balde e o poço é fundo. De onde vais tirar a água viva? Por acaso, és maior do que o nosso pai Jacó, que nos deu o poço e que dele bebeu como também seus filhos e seus animais?” (Jo 4,11-12).

Alguns mistérios da fé são compreendidos somente quando o próprio Deus nos instruir. O longo diálogo de Jesus com a samaritana é uma catequese sobre o “dom de Deus”. Jesus parte da água do poço de Jacó, mas quer fazer a samaritana compreender a respeito de “outra água”, a água que sacia plenamente: “Se tu conhecesses o dom de Deus e quem é que te pede: ‘Dá-me de beber’, tu mesma lhe pedirias a ele, e ele te daria água viva (...). Todo aquele que bebe desta água terá sede de novo. Mas quem beber da água que eu lhe darei, esse nunca mais terá sede. E a água que eu lhe darei se tornará nele uma fonte de água que jorra para a vida eterna” (Jo 4,4.13-14).

O que mesmo Jesus quis dizer à samaritana quando lhe falou da “água viva”? Não se trata da água corrente do poço, como ele mesmo disse, mas de uma realidade espiritual dado ao que tem fé para reconhecer “o dom de Deus” e que o conduz à vida eterna. Para os estudiosos da Bíblia, a “água viva” é a revelação que Jesus faz de si mesmo, o seu evangelho, a novidade de sua mensagem, que, com a sua presença, gestos e ensinamentos, instaura no mundo as primícias da salvação cristã; neste sentido, Jesus é a sabedoria de Deus, a “luz do mundo” (Jo 8,12) e o “pão da vida” (Jo 6,35), que substitui a Lei. Ainda, segundo os estudiosos da Bíblia, a “água viva” é o Espírito Santo (“dom de Deus”), dado pelo Cristo glorificado, conforme Ele mesmo havia prometido antes de ressuscitar: “No último dia da festa, o mais solene, Jesus, de pé, disse em voz alta: ‘Se alguém tem sede, venha a mim e beba, aquele que crê em mim!’, conforme a palavra da Escritura: Do seu seio jorrarão rios de água viva. Ele fala do Espírito que deviam receber aqueles que tinham crido nele; pois não havia ainda Espírito, porque Jesus ainda não fora glorificado” (Jo 7,37-39). A “água viva” (“dom de Deus”) é o Espírito Santo, conforme testemunha o evangelista Lucas (At 2,38; 8,20) e como testemunha a Carta aos Hebreus (6,4). E ainda conforme o evangelista João, é o dom do Espírito quem nos faz compreender o evangelho de Jesus: “O Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos disse” (Jo 14,26).

A tradição cristã compreendeu o diálogo de Jesus com a samaritana como uma catequese batismal. Mas, nessa instrução do Senhor, note-se uma diferença: enquanto, para Nicodemos, Jesus fala em “nascer da água e do Espírito” (Jo 3,5), para a samaritana, fala em “beber da água viva”. É assim que o apóstolo Paulo lembra o batismo cristão: “Fomos todos batizados num só Espírito para ser um só corpo, judeus e gregos, escravos e livres, e todos bebemos de um só Espírito” (1Cor 12,13). Um dos primeiros símbolos cristãos do batismo foi o cervo que bebe água da fonte, inspirado no salmo 42. A cena da samaritana junto ao poço de Jacó aparece na arte primitiva das catacumbas como símbolo do batismo.

Jesus conduziu a samaritana e muitos de seus contemporâneos a confessar abertamente a fé em Cristo: “Este é verdadeiramente o salvador do mundo” (Jo 4,42). É Cristo quem dá a “água viva”, saciando plenamente a quem o busca na fé. O Prefácio da missa de hoje proclama que Cristo nos dá o dom da fé a fim de fazer brotar no coração dos fiéis – como aconteceu com a samaritana – o amor de Deus: “Ao pedir à samaritana que lhe desse de beber, Jesus lhe dava o dom de crer. E, saciada sua sede de fé, lhe acrescentou o fogo do amor”.

A quaresma é um tempo apropriado para retornar à fonte de “água viva”, à fonte batismal, não para ser rebatizado, pois o batismo cristão é recebido uma única vez, e sim para renovar a “vida nova” iniciada no batismo e relembrar os compromissos batismais. No batismo recebemos o “dom de Deus” por intermédio da água abençoada. Não foi a água corrente que ganhamos no dia do batismo, e sim uma vida que nos une a Deus e aos irmãos, começada nesta vida terrena para terminar na vida eterna. Ser batizado não é somente ser lavado na pia batismal, mas deixar-se encharcar por uma água invisível, água da vida divina, que nos faz participar da vida da Trindade e de sua missão no mundo. O batismo é uma graça, sem dúvida a melhor das graças recebidas, que nos afeiçoa e nos enxerta na vida mesma de Deus, mas é também uma graça que nos capacita para o testemunho e a solidariedade sem limites e sem fronteiras. O batismo nos dá a força para renovar o mundo. É como a água que verdeja e rejuvenesce a Igreja e a face da terra.

Em tempos de consumo desenfreado de produtos, emoções e ilusões, em tempos de uso irresponsável dos bens da natureza cósmica, em tempos de experiências de “extravio” e de buscas sem resposta, procuremos o oásis que sacia plenamente as nossas buscas, as nossas angústias, as nossas esperanças, enfim, a nossa sede, fazendo-nos repousar em sua sombra. E, com a samaritana, peçamos: “Senhor, dá-me desta água, para que eu não tenha mais sede” (Jo  4,15). E, com o salmista, ouçamos os gemidos silenciosos de nossos corações: “Como a corça bramindo por águas correntes, assim minha alma aspira por ti, ó meu Deus! A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo: quando voltarei a ver a face de Deus?” (Sl 42,2-3). Retornemos à fonte, para beber água pura! Retornemos a Deus, ao evangelho do Filho, ao dom do Espírito, para beber de sua água! Retornemos à comunidade de fé para saciar os outros e a nós mesmos! Retornemos à fonte que “jorra para a vida eterna” e nos tornemos fonte para os outros!

Frei Nedio Pertile
Cuiabá, 24 de março de 2011

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