A salvação de Deus não conhece fronteiras
XX Domingo do Tempo Comum – Ano A
Is 56,1.6-7; Sl 67(66); Rm 11,13-15.29-32; Mt 15,21-28
Reunidos em assembléia litúrgica, lembramos e proclamamos a graça da salvação do Deus Trino, oferecida a toda a humanidade. Esta graça, conforme o plano divino, centralizada em Jesus Cristo, nosso Redentor, por quem recebemos o Espírito Santo e no unimos ao Pai, é gratuitamente oferecida a quem a acolher com fé. Em seu transbordamento de amor eterno, “Deus, nosso Salvador, quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tm 2,4). Não é sem razão que, já no Antigo Testamento, o salmista, tateando em sua fé, o dom da salvação estendido além das fronteiras do povo hebreu, convida a louvar o Senhor do Universo, dilantando a sua bênção a todas as gentes: “Que todas as nações vos glorifiquem, ó Senhor. [...] Que na terra se conheça o seu caminho e a sua salvação por entre os povos” (Sl 67[66]). A liturgia, ao evocar o misterioso plano de salvação universal, nos faz proclamar que o Deus Amor preparou aos que o amam “bens que os olhos não podem ver” e que a prática da caridade nos faz ir “ao encontro das promessas divinas que superam todo desejo” (Oração do dia).
Dos caminhos da sabedoria e pedagogia divinas, desvela-se a predileção de Deus por um povo pequeno e sofrido, mas transformado em “luz das nações” (Is 42,6;49,6). Os profetas pressentem que a salvação de Deus não poderia ser exclusividade de Israel. A primeira leitura (Is 56,1.6-7), um oráculo profético pós-exílico, ao encher de esperança o povo sofrido recém retornado à sua pátria, aonde tudo deveria ser restaurado, convida os estrangeiros a se associarem aos judeus na prática da Lei e no culto do templo para participarem também eles da salvação. Para experimentar a salvação, não era mais preciso ser da etnia judaica, em contrapartida era necessário a fidelidade aos preceitos da Lei do Senhor, e assim o templo se tornaria “casa universal”: “Minha casa será chamada casa de oração para todos os povos” (Is 56,7).
Para realizar o plano divino da salvação universal, o Filho de Deus nasce, vive e trabalha em terras judaicas. O nosso Salvador, Jesus Cristo, compreende a si mesmo primeiramente como o Enviado “às ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 15,24) e que “a salvação vem dos judeus”, como havia declarado no diálogo com a samaritana (Jo 4,22). À época do ministério público do Senhor, havia o senso comum de que o povo judeu era o “filho predileto” de Deus, com conseqüente desprezo aos que não pertenciam à etnia judaica, considerados como “cachorros”. A este propósito, os mestres da lei ensinavam que “quem come com um idólatra é como alguém que come com um cachorro”. Jesus não se atém à distinção entre judeus e pagãos, superando o senso comum do desprezo aos de “fora” da etnia judaica. A pregação e a atividade de Jesus rompe as barreiras do puro-impuro, justo-pecador, bom-mau, bem como a pregação dos apóstolos depois da ressurreição do Mestre. Dentro das fronteiras do judaísmo, Jesus vai ao encontro dos publicanos e pecadores para oferecer-lhes a salvação, demonstrando e declarando-se amigo dos pecadores e publicanos. O evangelista Mateus mostra que os benefícios da salvação alcançaram também os não-judeus, como é o caso da cura do servo do centurião (Mt 8,5-13), a expulsão dos demônios entre os gadarenos (Mt 8,28-34) e a viagem ao território de Cesaréia de Felipe (Mt 16,13).
O evangelho deste domingo narra a cura da filha de uma mulher cananéia, na região de Tiro e Sidônia (Mt 15,21-28). O evangelista Mateus ressalta a fé e a coragem desta mulher estrangeira, tão profundamente angustiada e que chega a se humilhar até invocar o “Messias dos judeus”: “Senhor, Filho de Davi, tem piedade de mim: minha filha está cruelmente atormentada por um demônio!” (Mt15,22). A mulher não desiste da súplica nem mesmo diante do aparente silêncio de Jesus. A insistência da fé da cananéia é exemplo de fé para todos os que crêem em Cristo, como fazem nas assembléias ou individualmente. O aparente silêncio de Jesus representa o “silêncio de Deus” diante dos sofrimentos humanos. Somente uma grande fé pode vencer as resistências do mal. Muito embora os discípulos achassem incômoda a insistência da mulher estrangeira a ponto de pedirem que Jesus a mandasse embora (Mt 15,23), o próprio Jesus dá uma lição aos ciumentos discípulos, louvando a fé da mulher e atendendo o seu pedido: “’Mulher, grande é a tua fé! Seja feito como tu queres!’ E a partir daquele momento sua filha ficou curada” (Mt 15,28). A cura da filha da cananéia mostra que a salvação de Deus não conhece fronteiras. Com efeito, após a ressurreição, os apóstolos recebem o mandato de levar o evangelho a todos os povos (Mt 28,19).
O apóstolo Paulo, tomado de zelo pelo anúncio da salvação cristã, a partir da missão recebida do Ressuscitado, vangloria-se de ser o “apóstolo dos gentios”: “E a vós, gentios, eu digo: enquanto apóstolo dos gentios, eu honro o meu ministério” (Rm 11,13). O apóstolo, como vimos domingo passado, não acredita que Deus excluiu os judeus do seu plano de salvação. A infidelidade dos judeus diante da misericórdia de Deus é parcial e temporária, por isso não universal e não definitiva, considerando que “são insondáveis os seus juízos e impenetráveis os seus caminhos” (Rm 11,33). Embora Paulo seja um cristão convicto, sobre cujas costas carrega a responsabilidade de levar a salvação cristã para fora das fronteiras do judaísmo, continua a considerar-se membro da etnia judiaca (“minha carne”), expressando a ela a sua solidariedade e provocando o “ciúme” para tentar salvar, pelo menos, alguns judeus (Rm 11,4). Sim, a salvação é oferecida aos judeus, mas também aos pagãos: “Não me envergonho do evangelho: ele é a força de Deus para a salvação de todo aquele que crê, em primeiro lugar do judeu, mas também do grego” (Rm 1,16). E, aconselha aos pagãos convertidos não se ensoberbecerem ou se vangloriarem porque acolheram o Salvador; compara-os aos ramos de uma oliveira selvagem enxertados numa oliveira doméstica (judeus), de cuja raiz e seiva se sustentam (Rm 11,16-24). No mistério e paradoxo de seu plano de salvação, diz Paulo: “Deus encerrou todos na desobediência para a todos fazer misericórdia” (Rm 11,32).
A lógica divina da salvação é a lógica da inclusão e da unidade. A história humana, no entanto, não é regida por esta lógica, como seria de se esperar a partir do projeto de salvação universal, retomado de geração em geração no decurso da história. As discriminações de ordem étnica, religiosa e econômica tendem a se reproduzir de geração em geração. Ainda hoje deparamo-nos com a ditadura ou imposição das diferenças, criando divisões e classificações, acompanhadas às vezes de intolerância e violência. O fenômeno das discriminações pervade os relacionamentos, mas não só, envenena o interior das pessoas, gerando atitudes excludentes e de superioridade. Por incrível que pareça, distando há dois mil anos da mensagem evangélica, repetida incansavelmente por zelosos pregadores, o ideal do único Deus e da fraternidade humana continua sendo um ideal a ser buscado. As experiências humanas não iluminadas pela fé acabam apagando a sede da experiência da salvação, e distanciando a própria vida de sua fonte. Quando as pessoas e a sociedade em seu conjunto perdem a direção do plano de Deus, a conseqüência é o extravio, a degeneração, a arbitrariedade e a irracionalidade.
Por mais que a história humana, marcada pelo pecado, tente a impor a lógica da divisão e da perdição (cultura de morte), cabe aos cristãos testemunhar um sadio otimismo e uma alegria profunda, fundamentada na graça da salvação, que compromete na salvação do mundo. Renovemos, por isso, cada dia, a fé e a esperança no amor salvador e gratuito de Deus, para alimentar a prática da caridade em favor de uma cultura de vida. Não nos cansemos de dizer ao nosso coração: “Faze o bem e evita o mal”, para que ele seja o mestre a nos guiar na busca do que realmente enobrece e dignifica a vida humana. Utilizemos o tempo da oração, mas também o tempo do trabalho e do lazer, o tempo dos passeios e das visitas, para não perder de vista que Deus quer nos salvar, não sozinho, mas conosco, que Ele reclama a nossa companhia e o nosso amor. Cooperemos com aquilo que o Espírito de Deus desperta em nossas consciências, seja para o bem das pessoas e o nosso próprio bem, seja para o louvor da glória do Nome de Deus. Nem o pecado, nem o desespero, nem a presunção, nem os “profetas das desgraças”, ou seja, nada e ninguém podem desfazer ou apagar a certeza que Deus escreveu em nossos corações: a participação no seu Reino de vida eterna, já vivido e experimentado, de alguma maneira, em nossa vida presente. Não apaguemos a sede da paz, a sede do verdadeiro amor, a sede da justiça, a sede da fraternidade, a sede da Beleza, a sede de Deus!
Frei Nedio Pertile,OFMCap.
Cuiabá, 11 de agosto de 2011
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