IV Domingo da Quaresma – Ano A
ISm 16,1.6-7.10-13; Sl 22; Ef 5,8-14; Jo 9,1-41
O tempo litúrgico da Quaresma é caracterizado como tempo intenso de conversão, de renovação interior, de esforço pessoal para continuar no caminho da vida cristã, iniciada desde o dia de nosso batismo. O tempo quaresmal, ao contrário do que possa parecer, não é de tristeza e melancolia, nem de amargura e ressentimento, mas de alegria interior, alegria espiritual, pois nos aproximamos da grandiosa e luminosa festa da Páscoa. Cristo é o nosso caminho, a nossa Páscoa e a nossa Luz. É a sua luz – simbolizada no círio pascal e no fogo novo abençoado – que inunda e penetra os batizados na noite de Páscoa. E é exatamente esta alegria que a liturgia deste quarto domingo da quaresma nos oferece, como diz a Antífona de entrada da missa, inspirada em Is 66,1-2: “Alegra-te, Jerusalém! Reuni-vos, vós todos que a amais; vós que estais tristes, exultai de alegria! Saciai-nos com a abundância das vossas consolações”. O clima de alegria e de festividade, que caracteriza a liturgia deste domingo deve-se também ao fato que, na quarta semana da quaresma realizava-se outrora o escrutínio pré-batismal da “abertura dos ouvidos”, rito purificador que afastava o catecúmeno das influências do mal e o aproximava do mistério da salvação com seus ouvidos purificados pela fé.
É, pois, neste contexto batismal que se compreendem as leituras bíblicas do quarto domingo da quaresma, em continuidade ao mesmo tema do terceiro domingo quaresmal. No domingo passado, ouvíamos que Moisés, por ordem de Deus, feriu a rocha, fazendo brotar a água para saciar a sede do povo (Ex 17,3-7) e, conforme Paulo, “a rocha era Cristo” (1Cor 10,4). Em cada batismo, Cristo dá a “água viva”. O evangelho narrava o encontro e o longo e paciente diálogo de Jesus com a samaritana, à qual lhe prometeu “água viva”, conduzindo tanto a ela quanto a seus conterrâneos à fé em Cristo (Jo 4.5-42).
A primeira leitura deste domingo narra a unção do pastor Davi como rei de Israel. Cumprindo a ordem de Deus, Samuel ungiu a Davi: “E o Senhor disse: Levanta-te, unge-o: é este! Samuel tomou o chifre com o óleo e ungiu a Davi na presença de seus irmãos. E a partir daquele dia o espírito do Senhor se apoderou de Davi” (1Sm 16,12-13a). Davi foi escolhido por Deus não por causa de sua aparência exterior, mas por causa de seu interior, ou seja, da retidão de suas intenções, como diz a leitura: “Não julgo segundo os critérios do homem: o homem vê as aparências, mas o Senhor vê o coração” (1Sm 16,7). Davi foi ungido pelo Espírito de Deus para governar com sabedoria o povo eleito.
O batismo é um dom, uma iniciativa do próprio Deus que chama e unge para uma missão. O batizado é ungido, entre outras capacitações e atribuições, para participar da missão de Cristo e de sua Igreja. O rito do batismo prevê duas unções: uma, no peito, antes do banho batismal, com o óleo dos catecúmenos,e a outra, depois do banho batismal, desta vez, com o óleo do crisma, recebendo assim “ a força de Cristo”. A unção batismal é participação na unção de Cristo, como Ele mesmo explicitou bem no início de seu ministério público, retomando as palavras do profeta Isaías: “O Espírito do Senhor está sobre mim porque ele me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar a remissão aos presos e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 4,18-19; Is 61,1-2).
O evangelho deste domingo, prosseguindo a catequese batismal, narra a cura de um cego de nascença. Jesus toca-o com a laça feita com sua saliva, e manda-o lavar-se na piscina de Siloé, levando-o a professar a fé em Cristo: “Eu creio Senhor! E prostrou-se diante dele” (Jo 9,37).
A cura do cego de nascença é um dos episódios mais dramáticos descritos pelo evangelista João. O milagre ou o sinal da cura mostra o confronto da luz com as trevas, da verdade com a mentira. O cego precisou ser curado para acreditar na auto-revelação do Filho de Deus. Jesus o fez passar da visão física à visão espiritual, tornando-se finalmente seguidor de Jesus. Não bastasse esse sinal, como tantos outros, os fariseus preferiram permanecer não vendo, ou como diz o provérbio popular, “o pior cego é o que não quer enxergar”. Os fariseus se consideravam videntes, seguros em seu legalismo casuístico, por isso Jesus impiedosamente os taxou assim: “São cegos conduzindo cegos” (Mt 15,14). A cegueira dos fariseus enrijeceu-os de tal maneira que eles instauraram um processo contra o cego que havia sido curado, ofendendo-o e por fim expulsando-o da sinagoga (Jo 9,39). O fato da expulsão talvez seja uma ressonância da expulsão dos cristãos da sinagoga por parte dos judeus, ocorrida entre os anos 80-85 d. C., numa reunião em Jâmnia, com a seguinte determinação: “Maldito todo o que segue o Nazareno”. Aos fariseus que recusavam a auto-revelação do Enviado de Deus (Jesus Cristo), a luz de Cristo se transformou para eles em julgamento e condenação, pois mesmo vendo seus sinais, continuaram a rejeitá-lo. Eis, então, o que Jesus lhes assevera: “Eu vim a este mundo para exercer um julgamento, a fim de que os que não vêem vejam, e os que vêem se tornem cegos [...]. Se fôsseis cegos, não teríeis culpa; mas, como dizeis ‘nós vemos, o vosso pecado permanece” (Jo 9,39.41).
O cego curado tornou-se seguidor de Jesus. Deu, como se diz, “uma guinada na vida”, largando de vez aquela possível vida instalada e cômoda que lhe impunha a cegueira. Jesus limpou-se os olhos físicos e os olhos da fé, iluminou-o desde dentro. O cego foi iluminado por Aquele que se diz “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida” (Jo 8,12).
O dom da fé ilumina a consciência, aquece os sentimentos e move a vontade. Dá a capacidade da prontidão e da coragem, a intrepidez. Tudo isso se coloca no plano da gratidão pelo dom recebido. O testemunho da fé, no entanto, exigirá sempre de nós a purificação das imagens que criamos a respeito de Jesus Cristo, de sua Igreja e de nós mesmos. É preciso que Ele nos ilumine, pois, como diz o salmo: “Em tua luz, vemos a luz”.
A rejeição do Enviado de Deus é um mistério que não diz respeito somente aos fariseus, mas atinge a humanidade inteira, como diz o Prólogo do evangelho de João: “A luz brilha nas trevas, mas as trevas não a aprenderam” (Jo 1,5). A mesma constatação é feita por Jesus quando de seu encontro com Nicodemos: “Este é o julgamento: a luz veio ao mundo, mas os homens preferiram as trevas à luz, porque as suas obras eram más” (Jo 3,19). A percepção da luz de Deus e da revelação de seu Filho escapa aos que vivem no reino da maldade e da mentira. O reino da luz não se harmoniza e nem dialoga, não se confunde e nem combina com o domínio das trevas, visto que um abismo intransponível os separa. Quem descobriu a luz de Cristo passa a reconhecer as trevas do mundo. Quem vive nas trevas (do erro, do pecado, da morte) ainda não sentiu o calor da luz divina.
Para o apóstolo Paulo, o cristão batizado é alguém que se apartou do domínio das trevas (costumes pagãos, idolátricos) e começou a viver no reino da luz. Na segunda leitura (Ef 5,8-14), já supondo o fato do batismo nas comunidades cristãs primitivas, Paulo realça a condição da “nova vida” à qual foram inseridos os batizados, os quais, em virtude do batismo, devem viver sob a luz de Deus e dar testemunho da luz. Usando a imagem de que o batismo faz passar do reino das trevas para o reino da luz, Paulo adverte os cristãos: “Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Vivei como filhos da luz. E o fruto da luz chama-se bondade, justiça, verdade [...]. Não vos associeis às obras das trevas, que levam ao nada...” (Ef 5,8-11). A advertência paulina termina com um antigo hino em honra ao Cristo “luz do mundo”: “Desperta, tu que dormes, levanta-se dentre os mortos e sobre ti Cristo resplandecerá” (Ef 5,14).
A Igreja primitiva chamava o batismo de “iluminação”: “Este banho é chamado iluminação, porque aqueles que receberam este ensinamento [catequético] têm o espírito iluminado” (São Justino. Apologia I,61). Os cristãos eram chamados de “iluminados”. O Prefácio da missa mostra a ligação da cura do cego de nascença com o batismo enquanto iluminação: “Ele, pelo mistério da encarnação conduziu à claridade da fé os homens que caminhavam nas trevas e elevou à dignidade de filhos os que nasciam escravos do pecado, fazendo-os renascer nas águas do batismo”. A Oração depois da comunhão pede a iluminação do coração para pensar e agir conforme o que agrada a Deus: “Ó Deus, luz de todo o ser humano que vem a este mundo, iluminai nossos corações com o esplendor da vossa graça, para pensarmos o que vos agrada e amar-vos de todo o coração”.
A celebração do batismo contém um rito explicativo, embora bastante simples, que expressa o efeito batismal da iluminação: é a entrega da vela, acesa no círio pascal, ao batizando adulto ou aos pais, com estas palavras: “Recebei a luz de Cristo. Pais e padrinhos, esta luz vos é entregue para que a alimenteis. Por isso, esforçai-vos para que estas crianças caminhem na vida, iluminadas por Cristo, como filho da luz. Perseverando na fé, possam com todos os santos ir ao encontro do Senhor, quando Ele vier” (Sacramentário). Durante o Sermão da Montanha, Jesus chamou aos que o seguiam de “luz do mundo”: “Vós sois a luz do mundo [...]. Brilhe a vossa luz diante dos homens, para que, vendo as vossas boas obras, eles glorifiquem o vosso Pai que está no céu” (Mt 5,14-16).
Todo batizado se torna um iluminado e um iluminador. A iluminação recebida de Cristo no dia do batismo não termina no batismo, como se fosse uma chama que se apaga logo depois de acesa. Esta luz deverá ser buscada e testemunhada pelos batizados até o fim de suas vidas, sob a pena de perderam a graça batismal. O batizado testemunha que foi, de fato, iluminado no seguimento de Jesus. É quando o dom da iluminação se transforma em comprometimento de iluminação, no âmbito do dever de gratidão. Uma vez inserido pelo batismo no mistério da morte e ressurreição de Cristo e de seu Corpo (Igreja), o batizado tem o direito e o dever de participar da missão de Cristo e de sua Igreja. Os Padres da Igreja entendiam o seguimento de Jesus (o que hoje dizemos, depois do evento da Conferência em Aparecida, “discipulado missionário”) como exigência do batismo: “Precisamos viver conforme os costumes que convém à nossa condição de membros de nosso Senhor Jesus Cristo” (Teodoro de Mopsuéstia. Hom. Cat. XIII, 12).
É importante não esquecer que um dia fomos batizados e que, a partir de então, já não nos pertencemos mais. O batismo nos tirou de um mundo e nos colocou noutro. Viver o batismo é dar testemunho claro (iluminador) de familiaridade e comunhão com Cristo, mas também de amor à sua Igreja, superando a consciência isolada e as falsas seguranças que a sociedade impõe. O consumismo desenfreado e irresponsável, a concorrência e a apropriação são molas propulsoras do mundo atual, que nos anestesiam, nos paralisam e podem nos levar à cegueira espiritual. É preciso atenção para não sermos também anestesiados por uma religiosidade de interesse e de fuga, e lembrar que o batismo nos coloca no mistério de Cristo e de sua Igreja e no mistério dos pobres, dos pecadores e dos excluídos.
Ao convocar os batizados para o “discipulado missionário”, o Documento de Aparecida, em sua mensagem final, deixa-nos o seguinte apelo: “Recobremos, portanto, o ‘fervor espiritual’. Conservemos a doce e confortadora alegria de evangelizar, inclusive quando é necessário semear entre lágrimas. Façamo-lo como João Batista, como Pedro e Paulo, como os demais apóstolos, como essa multidão de admiráveis evangelizadores que se sucederam ao longo da história da Igreja, façamos tudo isso com ímpeto interior que ninguém e nada seja capaz de extinguir. Seja essa a maior alegria de nossas vidas dedicadas” (Documento de Aparecida, nº 552).
Frei Nedio Pertile, OFMCap.
Cuiabá, 02 de abril de 2011.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Conhecer a Cristo pela fé é nossa alegria;
Segui-lo é nossa graça; e
Transmitir este tesouro aos demais
é nossa tarefa.
Que o Senhor nos confiou ao nos chamar
e escolher!