V Domingo da Quaresma – Ano A
Ez 37,12-14; Sl 129; Rm 8,8-11; Jo 11,1-45
A liturgia deste domingo nos conduz ao cerne da revelação cristã: o mistério da morte e da ressurreição de Cristo, mistério do qual o próprio Cristo, enviado do Pai, quer atrair todos os seres humanos: “Compadecendo-se da humanidade, que jaz na morte do pecado, por seus sagrados mistérios ele nos eleva ao reino da vida nova” (Prefácio da missa).
Antes da reforma litúrgica promovida pelo Concílio Vaticano II, o quinto domingo da Quaresma era chamado “Primeiro domingo da Paixão”. Já próximo da Páscoa, continuava a preparar, gradual e intensamente, os catecúmenos para unirem-se, através do processo da iniciação cristã, à Páscoa de Cristo. A comunidade cristã também renovava a vocação recebida graciosamente pela recordação do batismo e da penitência.
A “vida nova” trazida por Jesus Cristo é a “vida eterna”, que o seu Espírito inscreve em nossa humanidade a partir do batismo, e que nos faz degustar, por antecipação, em todo o nosso ser, o que um dia seremos. A ressurreição de Lázaro, que nos é narrada pelo evangelho deste domingo (Jo 11,1-45), é um anúncio antecipado da própria ressurreição de Cristo, e também diz respeito ao futuro da humanidade. É o último sinal que Jesus faz antes de sua morte, e nessa ocasião apresenta-se como “ressurreição e vida”: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá. E quem vive e crê em mim jamais morrera” (Jo 11,25-26).
É à luz da fé na ressurreição que se compreende a mensagem da primeira leitura (Ez 37,12-14). O profeta Ezequiel narra a visão do vale dos “ossos secos”, os quais são revivificados pelo Espírito de Deus. O povo eleito que vivia no exílio, conforme a visão de Ezequiel (Ez 37), é semelhante a um vale cheio de ossos, ou seja, uma multidão de pessoas mais mortas do que vivas: “Então ele me disse: Filho do Homem, estes ossos representam toda a casa de Israel, que está a dizer: ‘Os nossos ossos estão secos, a nossa esperança está desfeita. Para nós está tudo acabado’” (Ez 37,11). Ezequiel recebe a missão de Deus de anunciar a Palavra ao povo desesperançado, e será pelo poder desta Palavra e de seu Espírito, que o povo ressurgirá renovado. Se, no princípio da criação, o Espírito dá vida a todo ser criado, agora, a revivificação do povo exilado é como uma segunda criação , mediante o poder da Palavra e do Espírito. Em concreto, a revivificação do povo no exílio se efetivará com o retorno à pátria: “Porei em vós o meu espírito, para que vivais, e vos colocarei em vossa terra. Então sabereis que eu, o Senhor, digo e faço – oráculo do Senhor” (Ez 37,14). A visão profética da revivificação dos ossos foi recentemente interpretada como promessa de ressurreição universal dos mortos no final do tempos.
Para o apóstolo Paulo, Deus nos dá uma “nova vida” por meio de seu Filho e de seu Espírito. Esta nova vida invade e transforma o nosso corpo e o nosso espírito, fazendo-nos desejar a ressurreição e participar da vida d’Aquele que nos transfigurou. O cristão, pelo batismo, é integrado no mistério da morte e da ressurreição de Cristo, por isso, não vive mais no “reino da carne”, ou seja, não vive mais simplesmente dos anseios humanos, e sim pela força da fé, da esperança e do amor. Enquanto vivemos no “reino da carne”, conforme Paulo, estaremos levando uma vida limitada e fechada, sem poder agradar a Deus (Rm 8,8). É com o Espírito de Deus, recebido desde o dia do batismo, que já podemos viver como ressuscitados: “E, se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos mora em vós, então aquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos vivificará também vossos corpos mortais por meio do seu Espírito que mora em vós” (Rm 8,11). É no batismo que recebemos o Espírito que fez Jesus ressuscitar dos mortos, e este Espírito realizará em nós o que realizou em Jesus.
A transformação que o Espírito realiza no cristão, desde o dia de seu batismo, ainda não é completa, porque isso só vai acontecer quando estaremos face a face com Deus. É por isso que a nossa fé se reveste de esperança: se deixamos o Espírito agir em nós, agora, experimentaremos já em nossas atividades e trabalhos, ainda que provisoriamente, aquilo que seremos plena e definitivamente no amanhã de nossa vida, na comunhão com o nosso Criador. A fé cristã é cheia de esperança e confiança n’Aquele que pode nos libertar e nos transformar. Neste sentido, as palavras do salmo, que há pouco rezamos, são profundamente animadoras. É do fundo de nossas misérias que se eleva a nossa voz para Aquele que tem o poder de nos libertar e nos integrar no seu reino de amor sem fim: “Das profundezas eu clamo a vós, Senhor, escutai a minha voz! Vossos ouvidos estejam bem atentos ao clamor da minha prece. Se levardes em conta as nossas faltas, quem haverá de subsistir? Mas em vós se encontra o perdão, eu vos temo e em vós espero. No Senhor ponho a minha esperança” (Sl 129).
Movido por uma amizade particular – “Jesus era muito amigo de Marta, sua irmã Maria e Lázaro” (Jo 11,5), o evangelho deste domingo mostra os sentimentos autenticamente humanos de Jesus. Ao saber que Lázaro adoecera, Jesus se dirige à Judéia, mas ao chegar, encontra Lázaro já sepultado. Diante disso, chora: “Jesus, verdadeiro homem, chorou o amigo Lázaro” (Prefácio da Missa). Conforme o evangelista João, a morte do amigo Lázaro comoveu profundamente a Jesus: “Quando Jesus viu Maria chorar, e também os que estavam com ela, estremeceu-se interiormente, ficou profundamente comovido e perguntou: ‘Onde o colocastes?’ Responderam: ‘Vem ver, Senhor’. E Jesus chorou. Então os judeus disseram: ‘Vede como ele o amava’” (Jo 11,33-36).
Embora Jesus compreenda que a doença e a morte de Lázaro seja uma oportunidade para manifestar “a glória de Deus, para que o Filho de Deus seja glorificado por ela” (Jo 11,4), Jesus não escondeu seu amor e sua dor pelo amigo Lázaro. É para o amigo Lázaro, que Jesus reza ao Pai e lhe devolve a vida: “Jesus levantou os olhos para o alto e disse: ‘Pai, eu te dou graças porque me ouviste. Eu sei que sempre me escutas. Mas digo isso por causa do povo que me rodeia, para que creia que tu me enviaste’. Tendo dito isso, exclamou com voz forte: ‘Lázaro, vem para fora’. O morto saiu...” (Jo 11,41-44). O amor de Jesus é força de vida principalmente onde falta a vida.
A ressurreição de Lázaro é um sinal, que só poderá compreendido pela fé. Ao restituir a vida à Lázaro, Jesus quis sinalizar uma outra vida, a vida eterna para toda a pessoa que acredita no Filho de Deus. Marta, a irmã deLázaro, ao dialogar com Jesus, dá mostras de que acredita, sim, na ressurreição dos mortos, mas somente no final dos tempos: “Eu sei que ele ressuscitará na ressurreição, no último dia” (Jo 11,24). Mas Jesus a instrui de que a ressurreição é para agora, já, bastando que acredite no Enviado de Deus: “Eu sou a ressurreição [e a vida]. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá. E quem vive e crê em mim jamais morrerá” (Jo 11,25-26).
Mais do que simplesmente lembrar, a celebração eucarística, pelo poder do memorial litúrgico, nos transporta e nos insere no mistério único que envolve a morte e a glorificação do Filho de Deus. A eucaristia nos faz degustar por antecipação o mistério de nossa glorificação, reacendendo em nós a esperança da vida eterna, como diz o canto litúrgico: “Que a eucaristia apresse o dia por nós esperado”. Conforme o Documento de Aparecida: “A eucaristia, participação de todos no mesmo Pão da Vida e no mesmo Cálice de Salvação, nos faz membros do mesmo Corpo (cf. 1Cor 10,17) [...]. A Igreja peregrina vive antecipadamente a beleza do amor que se realizará no final dos tempos na perfeita comunhão com Deus e com os homens. Sua riqueza consiste em viver, já neste tempo, a ‘comunhão dos santos’, ou seja, a comunhão nos bens divinos entre todos os membros da Igreja, em particular entre os que peregrinam e os que já gozam da glória” (Documento de Aparecida, nn. 158.160).
Em tempos de consumismo desenfreado, de atrofia espiritual, de individualismo, de imediatismo e comércio religioso, a fé cristã nos purifica dos sepulcros que aprisionam a esperança. Quais são mesmo os nossos sepulcros? Quantos Lázaros encontramos em nosso caminho, esperando a voz de alguém que os tire do túmulo: “Lázaro, vem para fora”! (Jo11,43)! Quantos homens e mulheres de nosso tempo semi-mortos, descartados, como os “ossos secos” descritos pelo profeta Ezequiel, esperando as rajadas do Espírito de Deus para renascer? Não se morre só fisicamente. A morte espiritual também é um problema de nosso tempo, uma vez que há muitos que vivem “como se Deus não existisse” (Documento de Aparecida, nº 42).
Não nascemos para acabar na morte, nem mesmo para ser vítimas de uma morte antecipada e imposta, e sim para viver uma vida sem fim em Deus. Este é o nosso destino, a nossa meta, o nosso horizonte maior: o céu, depois da terra; o amor verdadeiro, depois dos sofrimentos e fracassos da vida presente; a comunhão, depois de tantas experiências de divisão; o encontro verdadeiro, depois de tantos extravios e desencontros; a justiça do amor salvífico, depois de tantos falsos amores e de injustiças terrenas. Vemos tantos sinais de morte no mundo e em nós mesmos, a ponto que se pode dizer que vivemos rodeados por uma “cultura de morte”. Apesar disso, é a esperança que marca o testemunho dos cristãos, mas uma esperança que tem um rosto e um nome: a comunhão dos ressuscitados em Deus.
Frei Nedio Pertile
Cuiabá, 08 de abril de 2011
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