sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Homilia dia 13/02/2011 'Do amor à justiça a justiça do amor' “Não vim abolir a lei e os profetas, mas dar-lhes pleno cumprimento” (Mt 5,17)


VI Domingo do Tempo Comum – Ano A
Eclo 15, 16-21; Sl 119(118); 1Cor 2,6-10; Mt 5, 17-37

Em cada domingo, a liturgia cristã celebra “o dia do Senhor”. A comunidade cristã se reúne para participar da eucaristia, assim recobra suas forças ao ouvir a Palavra de Deus e ao alimentar-se do “pão da vida”. A participação na liturgia dominical é uma expressão visível de nossa adesão e pertença a Jesus Cristo, que nos amou sem limites, até o fim, e de nossa pertença à Igreja. Em cada domingo, a Igreja propicia o encontro com o Senhor ressuscitado, em cuja luz se aclara os problemas e as angústias que atormentam a existência humana, bem como os revezes, os sofrimentos e as expectativas da comunidade humana. A liturgia dominical celebra a nossa salvação, por isso nos enche de luz, de alegria, de esperança e paz.

A liturgia deste domingo nos convida a irmos da fidelidade à letra da Lei para a justiça do amor, que está por trás do texto escrito da Lei, e que tem como modelo a pessoa de Jesus Cristo. Jesus Cristo é o “homem novo”, que realiza a vontade do Pai e abre caminhos para vivermos um novo estilo de vida baseado na lei do amor. Esse novo estilo de vida supõe conhecer a vontade de Deus e praticar uma “nova justiça”, superando a letra da Lei, e que recupera o verdadeiro espírito da lei: “Não penseis que vim abolir a lei e os profetas. Não vim para abolir, mas para dar-lhes pleno cumprimento” (Mt 5,17).

Essa instrução de Jesus aos discípulos, proferida solenemente no Sermão da Montanha, retoma a pregação profética da interiorização da lei e do culto, pois, tanto outrora quanto hoje, pode acontecer que tanto o culto quanto a prática da lei não correspondam às reais motivações do coração humano: “Abandonais o mandamento de Deus, apegando-vos à tradição dos homens... Sabeis muito bem desprezar o mandamento de Deus para observar a vossa tradição.. Assim invalidais a Palavra de Deus pela tradição que transmitis” (Mc 7,8-9.13). Esta dura advertência de Jesus, endereçada aos fariseus e doutores da lei (escribas), é uma alerta contra um tipo de vida formalmente fiel às leis e tradições, mas em contradição com a “nova justiça” proposta no relacionamento com Deus e com as pessoas. A observância da lei pode ser feita com espírito de barganha e por espírito de merecimento para ganhar o céu. São conhecidas, neste sentido, outras críticas severas a doutores da lei e fariseus que se apoderavam da lei para dominar os outros: “Os escribas e fariseus estão sentados na cátedra de Moisés... Amarram pesados fardos e os põem sobre os ombros dos homens, mas eles mesmos nem com um dedo se dispõem a movê-los” (Mt 23, 2.4).

O cumprimento de leis não garante que sejamos necessariamente considerados justos, e isto vale tanto para a lei de Deus quanto para as leis civis. Não é suficiente a fidelidade à risca à letra da lei, antes esta deve ser cumprida em modo pessoal, consciente e livre, de modo a alcançar o espírito da lei, que outro não é senão o bem dos outros, o bem de Deus e o próprio bem. Em se tratando de leis civis, não é estranho, em nosso país, em algumas instâncias e em algumas ocasiões, o legislar em causa própria, ou mesmo a prática chamada “justiça de duas medidas”, cada uma favorecendo e protegendo a seu modo, a arbitrariedade, a desigualdade, a falta de ética, a desconsideração do outro, e, a nível mais amplo, a “injustiça institucionalizada” (Documento de Puebla, nº. 495).

Os estudiosos do Antigo Testamento observam que o povo judeu mantinha uma veneração pela Lei de Deus, que lhe havia sido dada por meio de Moisés, pois a reconheciam como encarnação da sabedoria e do espírito de Deus; e, era declarado feliz quem progredia no conhecimento e cumprimento da Lei, pois desse modo agradava a Deus. É o que proclama o Salmo responsorial: “Feliz o homem sem pecado em seu caminho, que na lei do Senhor vai progredindo! Feliz o homem que observa seus preceitos e de todo o coração procura a Deus... Ensinai-me a viver os vossos preceitos; quero guardá-los fielmente até o fim. Dai-me o saber, e cumprirei a vossa lei, e de todo o coração a guardarei” (Sl 119 [118]).

Os mandamentos e preceitos da Lei de Deus são luzes, faróis orientadores para a vida dos judeus em todas as suas dimensões, e também é o motivo de um justo orgulho diante dos outros povos (cf. Dt 4,6-8). Tais preceitos e mandamentos, confiados ao povo da antiga aliança, num clima de liberdade, contém um grande valor pedagógico, inclusive para defender-se do mal: “Se quiseres observar os mandamentos, eles te guardarão” (Dt 15,15). O autor do livro do Eclesiástico (1ª Leitura) critica a afirmação de que o pecado é inevitável e a de que Deus estaria despreocupado com o ser humano e seus pecados. Ao contrário, enfatiza que o ser humano tem a liberdade de escolher entre o bem e o mal (livre arbítrio: pode fazer o bem, pode evitar o mal). Para este autor, Deus não abandonou o ser humano a vida sem sentido, mas lhe ofereceu um caminho de salvação, ao qual o ser humano, em resposta, poder percorrer em clima de liberdade e não de escravidão: “Desde o princípio ele criou o homem e o abandonou nas mãos de sua própria decisão... Se quiseres observar os mandamentos, eles te guardarão.... Diante do homem estão a vida e a morte, o bem e o mal, ele receberá aquilo que preferir” (Dt 15,14.16.18).

Deus não impõe, mas propõe! Respeita a liberdade e as decisões do ser humano. Isso mostra, da parte de Deus, o respeito à dignidade do ser humano. Da parte do ser humano, cada um é responsável por sua própria vida, por sua felicidade ou desgraça, por seu crescimento ou degeneração. Nas mãos de cada um está a liberdade de construir “sobre a rocha” ou “sobre a areia”, a realização ou a frustração. Em nossas mãos está a liberdade de seguir caminhos de vida ou caminhos de morte. O caminho, no entanto, que Deus oferece, é garantia de bênção, que se traduz por integridade de vida, felicidade, posteridade, vida longa e ingresso na terra prometida: “Eis que hoje estou colocando diante de ti a vida e a felicidade, a morte e a infelicidade. Se ouves os mandamentos de Iahweh teu Deus que hoje te ordeno – amando a Iiahweh teu Deus, andando em seus caminhos e observando seus mandamentos, seus estatutos e suas normas -, viverás e te multiplicarás. Iahweh teu Deus te abençoará na terra em que estás entrando a fim de tomares posse dela. Contudo, se o teu coração se desviar e não ouvires, e te deixares seduzir e te prostrares diante de outros deuses, e os servires, eu  hoje vos declaro: é certo que perecereis! Não prolongareis vossos dias sobre o solo... eu te propus a vida ou a morte, a bênção ou a maldição. Escolhe, pois, a vida, para que vivas tu e a tua descendência, amando a Iahweh teu Deus, obedecendo à sua voz e apegando-te a ele. Porque disto depende a tua vida e o prolongamento dos teus dias...” (Dt 30,15-20).

No Sermão da Montanha, Jesus instrui os seus discípulos sobre a nova lei do amor ao mesmo tempo em que levanta a voz contra a hipocrisia e o legalismo a que os escribas e fariseus haviam submetido à Lei de Deus. Os escribas e fariseus haviam se apropriado da Lei, Jesus quer restituí-la a Deus, para que nela se compreendesse a expressão da vontade de Deus. Devolver a lei ao seu verdadeiro Autor: isso exige conversão e aprendizado da “nova justiça”, presente no espírito da lei, cuja prática supera os critérios humanos: “Com efeito, eu vos asseguro que se a vossa justiça não exceder a dos escribas e a dos fariseus, não entrareis no Reino dos Céus” (Mt 5,20). Enquanto a prática da lei proceder de categorias ou critérios humanos, a “nossa justiça” estará longe daquilo proposto pelo espírito de Deus presente na lei.

Ao proclamar em tom alto e solene a nova lei – a lei do amor sem medidas – que aperfeiçoa e plenifica a Lei de Moisés e os profetas, Jesus propõe aos discípulos a imitação do agir de Deus: “Deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48). Jesus quer salvar a lei do formalismo exterior, mostrando que a sua prática deve tocar e penetrar o íntimo do ser humano, pois é justamente aí, no “sacrário interior” (consciência), que decidimos a vida em favor do bem ou do mal, da vida ou da morte, da luz ou das trevas. É do interior do ser humano que brota o anseio pela justiça verdadeira, como também o anseio pela perdição.

A prática exterior da lei não é suficiente para a salvação. É neste sentido que Jesus retoma os mandamentos da antiga aliança e acrescenta-lhes o espírito das bem-aventuranças. Por isso, na nova lei do amor, não é suficiente “não matar”, mas é necessário evitar o desprezo, a rixa, a cóleca com o irmão, nem sufocá-lo psicologicamente (Mt 5,21-22). Não é suficiente “não cometer adultério”, mas é preciso não alimentar a cobiça pela mulher alheia ou pelo homem alheio no próprio coração” (Mt 5,27-28). Não é suficiente evitar um “juramento falso”, mas deve-se “não jurar”, porque Deus quer que digamos sempre a verdade: “Seja o vosso ‘sim’, sim, e o vosso ‘não’ não” (Mt 5,37). Quanta necessidade temos, em nosso tempo, de veracidade, de sinceridade, de honestidade! Será que o que dizemos corresponde sempre ao que realmente intencionamos? Se dizemos a verdade, por que jurar? Não basta só lavar as mãos antes das refeições ou do culto, mas é preciso purificar o coração. Não basta só a oferenda ou ir ao culto, mas é necessário o perdão e a reconciliação com Deus e com as pessoas.

A lei do amor, que nos guia para além da letra da lei, não seria cumprida sem a sua interiorização. A graça de Deus nos ajuda a interiorizá-la, o que supõe o esforço em sair de si mesmo, desfazer-se de toda autossuficiência, para colocar, em primeiro lugar, o bem de Deus, o bem do outro e o bem de si. Esse esforço de interiorização da lei nos ajuda a superar aquela idéia de que é necessário cumprir a lei de Deus por dever ou por medo do juízo de Deus. No dinamismo de vida nova, que nos é dada desde o batismo, regida pela lei maior do amor, da parte de Deus em relação a nós, tudo será levado em conta, não só a prática dos mandamentos, mas até “quem der, nem que seja um copo de água fria a um destes pequeninos, por ser meu discípulo, em verdade vos digo que não perderá sua recompensa” (Mt 10,42).

A graça de Deus desperta e acalenta nossos propósitos e esforços de fidelidade à Lei do Senhor. O amor está na origem e na meta da Lei de Deus, é inclusive a sua perfeição, por isso Jesus, com seu exemplo, a plenifica. O amor é a perfeição da Lei. O apóstolo Paulo escreve: Não deveis nada a ninguém, a não ser o amor mútuo, pois quem ama o outro cumpriu a Lei... a caridade é a plenitude da Lei” (Rm 13,8.10).  Por isso, Santo Agostinho chegava a dizer: “Ama e faze o que queres”.

É a partir do dinamismo salvífico do amor sem medidas do Filho de Deus, que o apóstolo Paulo confronta a sabedoria dos homens com a sabedoria de Deus. A entrega que Jesus faz de si ao Pai e ao mundo na cruz é a “misteriosa sabedoria de Deus, sabedoria escondida, que, desde a eternidade, Deus destinou para a nossa glória” (1Cor 2,7). Esta sabedoria da cruz nos foi revelada pelo Espírito, que sonda as profundezas de Deus (cf. 1Cor 2,10). O apóstolo Paulo evangeliza com as fraquezas humanas, não se impõe pela força nem com o prestígio e persuasão da retórica, cujas técnicas dominava bem, mas com a força da cruz, pois esta é salvífica. A sabedoria da cruz não é captada pela perspicácia da sabedoria humana, nem pela perspicácia dos poderosos. Deus, em sua sabedoria, “despistou” os sábios humanos e poderosos na encarnação do seu Filho revestido de fragilidade. Se aqueles tivessem reconhecido o modo de Deus amar-salvando, “não teriam crucificado o Senhor da glória” (1Cor 2,8).

A lei maior do amor infinito não combina com o legalismo dos fariseus e escribas, nem com a perspicácia dos poderosos. Deus é infinitamente maior do que os critérios humanos, assim como a sua justiça vai além da justiça humana. O seguimento de Jesus nos conduz do amor à justiça (da lei) à justiça do amor (o espírito das bem-aventuranças).

Frei Nedio Pertile
Cuiabá, 11 de fevereiro de 2011



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Conhecer a Cristo pela fé é nossa alegria;
Segui-lo é nossa graça; e
Transmitir este tesouro aos demais
é nossa tarefa.
Que o Senhor nos confiou ao nos chamar
e escolher!