VII Domingo do Tempo Comum – Ano A
Lv 19,1-2.17-18; Sl 103(102); 1Cor 3,16-23; Mt 5,38-48
Reunidos para celebrar o “Dia do Senhor”, a liturgia deste domingo nos faz retornar à fonte do amor e da paz. A Palavra de Deus proclamada e tornada nosso alimento nos insere, uma vez mais, no mistério d’Aquele que amou a todos, indistintamente, até o fim, Jesus Cristo, restabelecendo a paz no mundo: “Ele é a nossa paz: de ambos os povos fez um só, tendo derrubado o muro da separação e suprimindo em sua carne a inimizade” (Ef 5,14).
Neste domingo, o evangelho faz ressoar aos nossos ouvidos outro trecho do Sermão da Montanha – em continuidade ao evangelho do domingo passado – em que Jesus conduz os discípulos ao ponto alto da nova interpretação da Lei de Deus, que supera toda expectativa. Ensina a imitar a perfeição de Deus: “Sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48). Desta imitação, decorre a ordem de amar indistintamente a todos, que se traduz em não praticar a vingança, em dar mais do que é pedido e de amar os inimigos, pois “assim vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o sol sobre maus e bons e faz cair a chuva sobre justos e injustos” (Mt 5,45). O ensino de imitar Deus é o cerne da mensagem da pregação de Jesus. Para realizar esta imitação, Jesus não pergunta aos discípulos se seriam capazes, nem visa facilitar a fé e os comportamentos cristãos, mas simplesmente ordena.
O mandamento de amar, indistintamente, o próximo - seja ele amigo ou inimigo; bom ou mau; justo ou injusto, pecador ou santo -, inclui o amor aos pobres, àqueles que a sociedade considera insignificantes, desvalorizados, marginalizados, excluídos e “descartados”. É justamente esse amor universal, concretizado no particular, o critério pelo qual Deus, um dia, nos julgará (Mt 25,31-46). “Na tarde de nossa vida, seremos julgados pelo amor” (S. João da Cruz).
Imitar o amor de Deus! Isso parece, à primeira vista, impossível, pois sabe-se bem que só pelo esforço humano pouco se alcança. Mas trata-se de ingressar na dinâmica do amor divino, regido pela gratuidade e pelo bem do outro. Amar é graça! Infelizmente, a palavra “amor” é hoje usada com significados ambíguos e está rodeada de muita confusão. Em se tratando de imitar o amor de Deus, trata-se da capacidade que nos é dada de amar desinteressadamente, sem apegar-se à espera da retribuição ou da recompensa, como diz a oração atribuída a São Francisco: “Senhor... que eu saiba mais amar do que ser amado”. O amor gratuito (sem interesses) constrói pessoas novas e novas relações, criando uma nova realidade. É um amor criador, paterno, cuja fonte é Deus, e que, uma vez nele envolvidos, seremos capazes de imitá-lo um pouco, pois diante d’Ele nos sentimos sempre devedores.Ao propor uma nova interpretação da Lei, não baseada nos limites seguros da moral farisaica que levava, no fim das contas, a um “quietismo estéril, e sim restituindo-a ao seu Autor – “Vós ouvistes o que foi dito... eu, porém, vos digo” – Jesus apresenta uma nova ordem nas relações humanas, a qual não se baseia na vingança e na auto-defesa, mas no amor incondicional, sem discriminações.
A lei da vingança – “olho por olho, dente por dente” (Mt 5,38) - era uma prática antiga no Oriente Médio e também em outros povos primitivos circunvizinhos. A “lei do talião” (Ex 21,24; Lv 24,20; Dt 19,21) visava manter o equilíbrio entre os grupos humanos (ressarcir um dano ou agressão com outro dano ou agressão: “talião” = tal ou igual, ou seja, pena igual ou semelhante). Entre o povo judeu, a lei do talião servia para restringir ou limitar a punição do vingador, que poderiam se exceder, a fim de proteger as pessoas vitimadas por ofensas, homicídios, roubos. Jesus rejeita o princípio da auto-defesa: “Não enfrenteis quem é malvado” (Mt 5,39). O discípulo não deve reagir à agressão física, mas suportá-la, nem opor-se a uma ação legal com outra ação legal (Mt 5,40). O amor inclui a todos. O preceito de odiar os inimigos não se encontra no Antigo Testamento, mas é uma interpretação popular do mandamento de amar o próximo. Mas, então, quem são os inimigos aos qual Jesus manda amar? O contexto em que foi escrito o evangelho de Mateus fornece a explicação: era tempo de perseguição dos cristãos, por isso os inimigos seriam os que perseguiam os cristãos por razões de fé, fossem esses judeus ou não-judeus (pagãos). O evangelho de Lucas transcreve a instrução de Jesus com estas palavras: “Amai os vossos inimigos, fazei o bem que aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos difamam” (Lc 6,27-28).
O amor sem discriminações é um amor íntegro, nesse sentido imita o amor de Deus. Na integridade do amor está a perfeição do amor divino e humano. A palavra “perfeito”, em hebraico, significa “inteiro”, “completo”, “íntegro”. Quando o ser humano pratica o amor íntegro, tentando assim imitar o amor de Deus, garantirá a integridade do agir cristão. É o que ensina Paulo a respeito do amor para com todos: “A ninguém pagueis o mal com o mal; seja a vossa preocupação fazer o bem para todos os homens, procurando se possível, vivem em paz com todos, por quanto de vós depende. Não façais justiça por vossa conta, caríssimos, mas dai lugar à ira [a ira divina que reserva para si a punição do pecado]... Antes, se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer, se tiver sede, dá-lhe de beber. Agindo desta forma estarás acumulando brasas sobre a cabeça dele. Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem” (Rm 12,17-21).
A lógica da vingança é a lógica do ódio, e não do amor. A vingança produz e reproduz a violência. Pode acontecer que a lógica da vingança, mesmo que não tenhamos consciência esclarecida a respeito, esteja adormecida em nosso interior, e uma vez, acordada, acaba levando a praticar ações de violência. De vez em quando, ouvimos expressões que reforçam o comportamento vingativo, como por exemplo: “não levo desaforo para casa”, “toma lá, dá cá”, “não tenho sangue de barata”, “pediu, levou”; “quem com ferro fere, com ferro será ferido”, e assim por diante. “Violência gera violência”. A história da humanidade está repleta de exemplos de vinganças que, infelizmente, ainda se repetem.
No grande conjunto de leis que regem a vida cultual e social do povo escolhido, a “Lei de Santidade” (Lv 17-25), a primeira leitura estende o Decálogo, propondo a imitação do Autor da Lei: “Sede santos, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo” (Lv 19,2). Na relação com o próximo, a imitação da santidade de Deus, exclui a rixa, a contenda, o ódio e exige a correção fraterna onde for necessário. É o que proclama a primeira leitura: “Não tenhas no coração ódio contra o teu irmão. Repreende o teu próximo, para não te tornares culpado de pecado por causa dele. Não procures vingança, nem guardes rancor de teus compatriotas. Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor!” (Lv 19,17-18).
Para o povo da antiga aliança, o “próximo” era o compatriota, o sócio ou vizinho da mesma etnia ou religião, inclusive o estrangeiro que se tornava membro comunidade do povo escolhido. Amar o próximo, ali, significava o respeito, a estima e a ajuda que devia ser dada a esses membros da comunidade. Ao proclamar a “nova lei” do amor, Jesus, no Sermão da Montanha, restitui o mandamento do amor às intenções do Autor da Lei, por isso ordena amar indistintamente, irrestritamente, o que inaugura uma nova ordem nas relações humanas, superando a “lei do talião” e a moral farisaica.
O preceito de amar os inimigos não significa torná-los nossos amigos, sendo favorável aos seus erros, mas oferecer-lhes compreensão e ajuda. Nem levam em conta as antipatias pessoais. O evangelho mostra que Jesus amou a todos com sinceridade e compaixão, e que também tinha amigos íntimos, prediletos, mas não se dispensou de criticar e de fazer duras ameaças aos seus adversários e perseguidores. Amou tanto a ponto de pedir ao Pai que os perdoasse, desfazendo assim o mecanismo da vingança ao retribuir com o perdão. E, ordenou aos discípulos: “Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem” (Mt 5,44). Só leva os inimigos diante de Deus, em oração, quem tem uma grande dose de amor, de amor sincero. Orar pelos adversários é procurar com sinceridade o bem deles. Diante de Deus, as desavenças desaparecem, e a oração se torna a recompensa, o revide (o “troco”) dos prejuízos ou danos impostos pelos que odeiam e agridem. Orar pelos inimigos é dar uma chance à paz, superando inclusive os ressentimentos e feridas.
O inimigo é o maior necessitado de ajuda, este entra nas exigências do amor ao próximo. Zelar pelo bem dos outros torna o amor difícil, e, às vezes, atrai grandes sofrimentos. Em ambientes onde predomina a corrupção, a violência, a tirania do poder, o amor se traduz em criar condições de vida digna, sem compactuar com as situações injustas impostas por outrem. Os pecadores devem ser acolhidos e o pecado deve ser eliminado. O agressor deve ser desarmado com a atitude de “resistência pacífica” – que não é passivismo – a fim de quebrar o círculo vicioso da violência:
“É preciso desencorajar o ‘tirano’ e também resistir-lhe, pelo seu bem e pelo bem dos irmãos. Ter oferecido demais, com freqüência, “o outro lado da face”, e terem inclinado demais, freqüentemente, as costas foi motivo de perpetuar-se de seculares ou milenares injustiças. Jesus morreu por não ter cedido às pressões que lhe chegavam das vozes da prudência e do bom senso. Não é preciso odiar quem quer que seja para ser subvertido da ordem injustamente constituída. O preceito do amor aos inimigos não desmantela a estrutura da sociedade, apenas refaz as relações humanas” (Ortensio da Spinetoli).
A proposta de Jesus para a solução dos conflitos comunitários, e de alcança social – o amor ao próximo, indistintamente – não é a nivelação das diferenças. Nós, seres humanos, temos a tendência à acomodação e ao costume de estabelecer relações somente com pessoas da mesma visão, do mesmo nível cultural e da mesma condição social. Buscamos o igual para nos identificarmos. A força do mandamento do amor supera os condicionamentos convencionais da coincidência ideológica, espiritual e cultural. Em outras palavras, o mandamento do amor faz sair de si mesmo e ir em busca do outro, do irmão, que é sempre o “outro”. É por isso que quem ama é um constante convertido e um missionário que se renova a cada dia.
Um dos lugares por excelência no mundo em que as relações humanas são regidas pelo amor é a comunidade eclesial. É pela comunidade cristã que Paulo trabalha incansavelmente para garantir e fortalecer a sua unidade. Na segunda leitura, Paulo continua a polêmica em relação à “sabedoria do mundo”, que acaba produzindo divisões ou partidarismos na comunidade cristã de Corinto. A sabedoria mundana desses cristãos mantém-nos na imaturidade espiritual, eles seguem o gosto das coisas terrenas, pois ainda são “homens carnais”: “Não vos pude falar como a homens espirituais, mas tão-somente como a homens carnais” (1Cor 3,1). O problema prática enfrentando por Paulo era a avaliação que os coríntios faziam de seus pregadores em base a critérios de vaidade e preconceitos, que são critérios da “sabedoria do mundo”.
Paulo, Cefas, Apolo, citados na segunda leitura, são “ministros” de uma missão que lhes foi confiada por Cristo. É por estes pregadores que Deus chamou os coríntios à fé. Embora a missão de cada um deles seja diferente – Paulo foi enviado para fundar a comunidade cristã, e Apolo para desenvolvê-la – é o mesmo Senhor quem os envia, com um mesmo objetivo, por isso os ministros são iguais: “Aquele que planta e aquele que rega são iguais entre si” (1Cor 3,8). Se se deve atribuir prestígio ou sucesso a um ministro da Igreja, isso se deve só a Deus: “... que ninguém ponha a sua glória em homem algum” (1Cor 3,11).
Para Paulo, a Igreja não é lugar para o discipulado de ministros. Os ministros de Deus servem à Igreja e à sua unidade, e estes não devem se servir dela para vanglória ou interesses pessoais. Onde Deus reina, não há lugar para endeusar ou idolatrar pessoas. A divisão, o partidarismo dentro da Igreja é antievangélico. O partidarismo profana a santidade da Igreja. O evangelho proclama a sabedoria do sofrimento, da cruz, e também ensina imitar a santidade de Deus, que é refletida na santidade da comunidade, em seu culto e em sua vida de caridade. Pelo batismo, cada fiel tornou-se morada do Espírito Santo, e este que santifica e edifica a Igreja (1Cor 3,16).
Frei Nedio Pertile
Cuiabá, 18/02/2011
Agradeço pela luz que estes textos nos revelam para realizar uma boa celebração da palavra, Deus continue abençoando nas palavras.
ResponderExcluirIsso mesmo devemos cada vez mais rezar e incentivar nossos Freis para que sejam abençoados nas palavras! Sidão Muito obrigada por contribuir com nosso BLOG...
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