VIII Domingo do Tempo Comum – Ano A
Is 49,14-15; Sl 62(61); 1Cor 4,1-5; Mt 6,24-34
Confiar em Deus é um teste para o orgulho humano. Tanto a história do povo eleito quanto à história individual que cada fiel atravessa, com frequência, a provação da confiança na Providência divina. O apego às seguranças humanas e às suas preocupações excessivas não se harmoniza com as pretensões divinas.
A primeira leitura (Is 49,14-15) faz ressoar aos nossos ouvidos palavras muito belas e profundamente consoladoras de Deus ao povo eleito, que vive no exílio. A perda da terra e da liberdade é uma experiência amarga, difícil de aceitar. O exílio é um ambiente de vida desesperador; o exilado vive a experiência do abandono, a ponto de perder a confiança no poder de Deus de reconduzi-lo à pátria: “O Senhor abandonou-me, o Senhor esqueceu-se de mim” (Is 49,14).
Para reanimar a confiança na realização das promessas divinas, o profeta começa argumentando com as obras do poder do Deus único e verdadeiro: “Não há outro Deus fora de mim” (Is 45,21). Com efeito, Israel fora escolhido, modelado e resgatado por Iahweh, o Deus criador do mundo e libertador de seu povo (Is 44-45). O profeta contrapõe a verdade de Deus e a de suas obras à nulidade dos ídolos e dos que os fabricam. Os que fabricam ídolos “nada sabem, nem entendem, porque os seus olhos são incapazes de ver e os seus corações não conseguem compreender” (Is 44,18). Só depois disso, o profeta apela ao amor terno de Deus, comparado ao da mãe para com seu filho: “Acaso pode a mulher esquecer-se do filho pequeno, a ponto de não ter pena do fruto do seu ventre? Se ela se esquecer, eu, porém, não me esquecerei de ti” (Is 49,15).
O traço maternal do amor de Deus pelo seu povo é “talvez a expressão mais tocante do amor divino em toda a Escritura” (Carol Stuhlmueller). Não é por acaso que o evangelista João reconhece no amor divino o maior mistério da revelação: “Deus é Amor” (1Jo 4,16), e transfere este amor à paternidade de Deus: “Deus tanto amou o mundo que entregou o seu Filho único” (Jo 3,16). O amor de Deus supera o amor da mãe. A mãe pode esquecer o seu filho, mas Deus, que nos criou não nos esquece: “Eu te modelei, tu és o meu Servo, Israel, tu não serás esquecido” (is 44,21).
O fato de Deus nos criar e não nos esquecer não pode ser entendido de maneira mágica, no sentido de nos dispensar das responsabilidade por achar que a Deus compete solucionar todas os problemas da existência humana. A confiança no amor providente de Deus não dispensa a nossa cooperação. Deus não nos substitui no que nos compete. É verdade que a vida cristã é uma vida sob a força da graça, dos dons, dos talentos e capacidades que o Criador implanta em nós, mas com o compromisso de fazê-los frutificar, e de, um dia, prestar contas a Ele daquilo que recebemos: “Aquele que muito se deu, muito será pedido, e a quem muito se houver confiado, muito será reclamado” (Lc 12,48); “Ó Deus... fazei que os vossos dons, nossa única riqueza, frutifiquem para nós em prêmio eterno” (Oração das Oferendas).
O evangelho deste domingo continua os ensinamentos do Sermão da Montanha em que Jesus apresenta a “nova lei” e o novo modo de vida para os cristãos, regido pelo amor irrestrito, incondicional, à imitação do amor de Deus. Talvez alguém ao ouvir o ensinamento de Jesus - “... não vos preocupeis com a vossa vida, com o que havereis de comer ou beber; nem com o vosso corpo, com o que havereis de vestir...olhai os pássaros do céu... olhai os lírios do campo” (Mt 5,25-28) – possa interpretá-lo como incentivo à acomodação, à ociosidade, à indolência, ao viver na “sombra e água fresca”, ficando de braços cruzados no aguardo de que as coisas caiam prontas do céu. Não! Jesus não está pregando a despreocupação, nem a desocupação, e muito menos a fuga ou a transferência das próprias responsabilidades. Jesus prega, sim, a “pré-ocupação”, o desejo-mestre de todas as ocupações do cristão, que é a busca da vontade de Deus, e nisto toca o cerne da vida cristã: “Buscai em primeiro lugar o reino de Deus e sua justiça” (Mt 5,33).
Jesus combate a “preocupação excessiva e ansiosa” em relação aos bens materiais, em detrimento do valor da pessoa. Este tipo de preocupação, que é bem mais do que simplesmente pensar e planejar, é uma espécie de “solicitação” (atração sedutora) que produz uma fidelidade dividida e termina numa concentração excessiva em bens materiais: “Ninguém pode servir a Deus senhores: pois ou odiará um e amará outro, ou será fiel a um e desprezará o outro. Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6,24).
Os bens materiais têm o seu devido valor, ninguém duvida disso. Alimento, bebidas, vestimentas: é disso que Jesus está falando, porém, mais importante do que estes é a pessoa, a qual merece mais atenção do que os bens externos: “A vida não vale mais do que o alimento, e o corpo mais do que a roupa?” (Mt 6,25). O problema é quando os bens exteriores se tornam uma “preocupação obsessiva”, o que nos assemelha aos pagãos, cujo único interesse é acumular bens terrenos: “Os pagãos é que procuram essas coisas” (Mt 6,32). Os cristãos devem focalizar a sua “pré-ocupação” em algo mais importante: o reino de Deus, pois dessa maneira Deus garantirá as coisas necessárias aos que trabalham para obtê-las.
“Olhai os pássaros do céu...” (Mt 6,26). Os pássaros mostram uma atitude sábia em relação aos alimentos. Assim como o passaredo, o ser humano não está dispensado de procurar obter o seu alimento. Falando a pessoas simples, que conheciam o modo de sobrevivência das aves, Jesus não recomendou abandonar o trabalho, e muito menos a indolência. O apóstolo Paulo, que trabalhava diuturnamente “para não ser pesado a ninguém”, garantindo assim o seu auto sustento, adverte os cristãos de Tessalônica sobre o dever de trabalhar para obter o “pão justo”: “Quando estivemos entre vós, já vos demos esta ordem: quem não quer trabalhar também não há de comer. Ora, ouvimos dizer que alguns dentre vós levam vida à-toa, muito atarefados em nada fazer. A estas pessoas ordenamos e exortamos, no Senhor Jesus Cristo, que trabalhem na tranquilidade, para ganhar o pão com o próprio esforço” (2Ts 3,10-12).
Viver ocupados? Sim! Se houver preocupação, esta não deve ir além do trabalho necessário para garantir a sobrevivência. É isso que Jesus ensina com o exemplo dos pássaros. As coisas necessárias à existência continuarão sendo sempre necessárias, já o acúmulo de bens não é sabedoria, pois o aumento da riqueza não prolonga a vida de ninguém. De que adianta uma vida longa regida pelo egoísmo? A busca da vontade Deus nos torna livres, capazes de discernir o que tem valor, e que por isso deve ser mantido, e o que não tem valor, e por isso deve ser deixado de lado: “Discerni tudo e ficai com o que é bom” (1Ts 5,21). A confiança em Deus guia o nosso discernimento a ver “além das aparências”.
Ocupar-se com as coisas do Reino de Deus! Este tipo de ocupação é um combate aberto contra a mentalidade crescente da “aposentadoria” e da desresponsabilização. Cresce, hoje, o fenômeno da ociosidade: pessoas que não querem trabalhar, nem sequer para garantir a própria sobrevivência. A ocupação da vida em ganhar o próprio pão e em fazer o bem aos outros, sob as mais variadas formas, é salvífica e medicinal, pois nesta atividade de doação a pessoa se realiza vocacionalmente no amor e se protege de doenças físicas e espirituais, que adviriam se não houvesse a ocupação.
Chamado a uma vocação especial, o apóstolo Paulo não temeu confiar-se inteiramente a Deus: “Tudo posso naquele que me fortalece” (Fl 4,13). Ciente de que toda a sua história pessoal foi regida pela graça de Deus, Paulo fala da autenticidade do seu ministério. Ele não se considera dono da comunidade por ele fundada, mas “servo” e “ministro”, “administrador dos mistérios de Deus” (1Cor 1,4). A vocação do apóstolo exige fidelidade ao ministério, dedicação aos interesses de Quem o escolheu e o preparou. A fidelidade ao ministério, entretanto, não está submetida ao julgamento de ninguém, nem de “tribunal humano”, mas somente Deus poderá julgar o apóstolo: “Quanto a mim, pouco me importa ser julgado por vós ou por algum tribunal humano. Nem eu me julgo a mim mesmo. É verdade que a minha consciência não me acusa de nada. Mas não é por isso que eu posso ser considerado justo. Quem me julga é o Senhor” (1Cor, 4,3-5).
Não é fácil confiar em Deus. Há quem prefira ancorar-se em seguranças humanas à busca sincera do querer de Deus. Fiar-se é uma questão de sobrevivência, de vida ou morte. Quando a vida perde o seu rumo, o seu foco principal, poderemos trabalhar incansavelmente e realizar grandes empreendimentos, no entanto, as preocupações imediatistas se tornarão um substitutivo do essencial, e nos escravizarão em suas próprias tramas. Não é só o dinheiro que desnorteia a vida humana, mas também outros ídolos, como a aparência (autoimagem), o cargo, o consumo, os bens materiais, o poder, a comida, a bebida, o prazer, etc. Num mundo que prega a felicidade nas aparências exteriores, fica difícil buscar a felicidade nas coisas invisíveis e essenciais. É possível, então, que devamos redirecionar a confiança para reancorar nossas certezas, e, assim, com o salmista, chegar a confessar: “Só em Deus a minha alma tem repouso, dele vem a minha salvação (...). Só em Deus, ó minha alma, repousa, deve vem a minha esperança (...). Confiai nele, ó povo, em qualquer tempo, derramai vosso coração em sua presença, pois Deus é um abrigo para nós” (Sl 62[61], 2.6.9).
Nedio Pertile, Ofmcap.
Cuiabá, 25/02/2011
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